Crônicas

Quando pequeno, ouvia falar em pistolão com grande frequência, mas não entendia o contexto em que o termo era usado, sabia apenas que algumas pessoas tinham pistolão. Primeiro, pensei se tratar de algo simples, concreto: um revólver. Nos filmes de bang-bang e nos desenhos animados, resolvia-se muitas situações complicadas da vida com revólveres. Eu mesmo, ensaiando para as dificuldades da vida adulta, ostentava na cintura um coldre com dois grandes reluzentes revólveres de espoleta. Cuidado com ele, ele tem um pistolão. Essa interpretação levou pouco tempo para desmoronar. Depois, pensei que o termo se referia a sujeitos com pinto grande, mas logo percebi que estava errado, porque mulheres também tinham pistolão. Levei bom tempo para entender o uso figurado da palavra. Ouvia o verbete em conversas de adultos, mas não entendia o real significado, nem mesmo tinha iniciativa para perguntar; crianças não costumavam avançar em assuntos de adultos, e quando faziam, invariavelmente recebiam a mesma resposta: isso é coisa de adulto, vá brincar… Como representante da geração X, posso atestar que naquela época, os pais não tinham muita paciência para explicar conceitos complexos aos pequenos. Talvez estivessem certos, cada coisa a seu tempo. Hoje fazemos questão de explicar tudo às crianças, até mesmo o que não entendemos, até mesmo o inexplicável. Enfim, com o tempo percebi que adultos se davam bem quando tinham pistolão. Tempos de ditadura. Bom emprego, boa colocação, um privilégio, um furo na fila de algum serviço público… nossa relação com o estado era intermediada pela misteriosa figura do pistolão. Quando perguntei por que estávamos há tantos anos na fila da CRT à espera de um telefone  enquanto o vizinho havia conseguido em apenas um mês, recebi uma obviedade como resposta: porque ele tem um pistolão. Muitas coisas funcionavam na base do pistolão. Sem pistolão, nada feito.  

Hoje em dia, embora com outros nomes, os pistolões continuam vivos, assim como os costas quentes. Pistolão e costas quentes podem parecer a mesma coisa, mas existe uma sutil diferença entre eles. Ambos têm como personagem central uma pessoa influente que intervém em favor de outra, porém de forma e em momentos diferentes. Ter pistolão é ter um contato, uma pessoa poderosa ou influente que concede um favor, muitas vezes de ética duvidosa, um privilégio ao amigo do rei. Ter costas quentes é ter proteção de alguém poderoso e influente. Um dá, concede, o outro mantém, protege. Não raro, o pistolão também esquenta as costas de alguém.

Embora a ditadura militar tenha terminado há muitos anos, ainda temos por aqui muitos pistolões e costas quentes. Infelizmente essas figuras não estão vinculadas a determinados regimes ou correntes políticas, trata-se das eternas idiossincrasias do ser humano fomentadas pela histórica condescendência e impunidade brasileiras. Os termos podem ter caído em desuso, mas as práticas continuam muito vivas. A diferença é que hoje em dia há certo pudor ao tratar do tema. Muitos evitam o assunto, parecem sentir certa vergonha. Será que algo está mudando? Não sei, talvez seja apenas consequência da sempre latente vocação da sociedade à hipocrisia. Se eu estiver errado, perdoem-me o pessimismo.

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